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domingo, 13 de fevereiro de 2011
Crise na vida consagrada ?
O Santo Padre, Papa Bento XVI, na sua primeira homilia como Papa, lembrou que Jesus não é indiferente ao fato “que tantas pessoas vivam no deserto. E existem tantas formas de deserto.
Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-se tão amplos” .
(Bento XVI)
É comum em nossos dias ouvir pessoas consagradas à vida religiosa afirmarem que estão em situação de deserto de dor e que perderam o sentido da vivência da fé e da consagração.
Ademais, deixam transparecer com a própria vida que estão sem rumo e que as motivações iniciais parecem não ter mais ressonância no empenho continuado pela vida de consagração e missão. Isso doe dentro de nós e nos interpela a fazer algo para restaurar as vidas destes irmãos e irmãs nossos. Urge para eles, com a ajuda da Igreja a necessidade de reavivar o dom de Deus que há em cada um deles.
Tal situação parece ser cada vez mais comum e tem favorecido o alargamento do que chamamos de crise do sentido religioso e do desencanto com o chamado vocacional interior recebido de Deus.
Para entender tal situação e preciso olhar a realidade do momento a partir de dentro, tentando visualizar os simbolismos da linguagem e da cultura que têm influenciado drasticamente o existencial dos que um dia se sentiram chamados pelo Senhor. Este olhar precisa ser profético e misericordioso.
Não são necessárias rebuscadas reflexões para detectarmos no atual momento da cultura uma fraqueza impar na compreensão da pessoa humana. Com isso a matriz dos valores humanos está sendo estrangulada.
Decorre daí a crise existencial que solapa a vida de um grande número de pessoas consagradas que chegam à vida religiosa machucadas pela falta de referencial humano, pois a reflexão sobre a pessoa humana atualmente é decadente e fragmentada.
Perdemos a capacidade de saber quem somos e, somando a isso, os vesgos de cunho psicológicos que trazemos em nossa bagagem pessoal facilmente nos leva a incapacidade de lidar com a dor e com as exigências do nosso existir. Desta feita, não é a vida religiosa e os demais estados de vida, especialmente o matrimônio, que estão em crise, mas as pessoas. Há uma crise da pessoa humana.
O momento cultural atual nem sempre prima pela essência do ser da pessoa, mas pela aparência ostentada pelo corpo como fonte de prazer, vaidade e consumo.
Há um notável desvio de foco: o que é acidental tornou-se essencial e o periférico ocupa a centralidade. Tal concepção, largamente difundida pela mídia e por certos ambientes massificantes, incide fortemente na vida religiosa, levando muitas pessoas ao desastre vocacional por não saber separar o joio do trigo.
Esta mentalidade está profundamente carregada de um relativismo moral e religioso que produz o que chamamos de secularismo ou autonomia do terrestre. Já o Concílio Vaticano II nos alertou sobre o perigo desta concepção que leva o homem a pensar que a obra criada é independente do Criador .
O que estamos vivendo pode ser facilmente confrontado com a Palavra de Deus. Quando Jesus afirma que o seu Reino não é deste mundo ele quer nos ensinar que o mundo, segundo a Bíblia, é um esquema mental produzido pelas pessoas que difere daquele que está na essência do amor salvífico de Deus. É o mundo do pecado e da desobediência que ocasiona no interior da pessoa humana o conflito, a crise e o dilema.
Acredito que o Apostolo Paulo tenha vivido este dilema, pois o jeito que ele vivia não era o jeito que o mundo de sua época vivia. Ou ele ou o mundo estava louco. Pelo que lemos em suas cartas, nota-se que ele chegou à conclusão que estava certo e que o núcleo existencial de sua vida era mesmo o anúncio do Cristo crucificado. Paulo, em Cristo, tornou-se o homem livre por excelência.
O esfriamento da vida religiosa não está no Carisma e tampouco nas constituições a serem vividas como “seqüela Christi” , mas na contaminação com a mentalidade frívola do mundo atual.
Na base da crise de compreensão do humano está uma profunda crise de fé de muitas pessoas consagradas. Eis um grande desafio para a Igreja de nossos tempos. Há muita gente sem rumo porque perdeu a fé. Sem a fé é fácil negar a Igreja, negar a vida religiosa e os conselhos evangélicos, negar o sentido da própria vida e negar o próprio Deus.
A mentalidade do mundo de hoje, além de relativista é profundamente materialista. De repente alguém na vida religiosa pode se ver na vontade de abandonar tudo para ir ao encontro de uma falsa liberdade e de uma falsa satisfação interior através das criaturas.
Não é de se estranhar que tem gente que não tem coragem de abandonar o barco, mas procura enche-lo com os apetrechos do consumismo, da vaidade e da sexualidade mal resolvida. Com isso a vida religiosa se torna uma mentira e uma duplicidade tormentosa, pois a pessoa passa a ser o que não é.
Como a mentira não pode assumir o lugar da verdade, a falta de unidade interior provoca a ruptura do ser e a pessoa passa a viver uma “neurose nuogena”.
Conversando com uma pessoa celibatária, consagrada numa comunidade de vida, ela me dizia que o inimigo tem roubado muitas pessoas consagradas através do afeto mal resolvido. É verdade.
A mentalidade do mundo leva as pessoas a viverem de maneira desconexa sua afetividade e a sexualidade que devia estar amadurecida por uma integração positiva descamba para a genitalidade desequilibrada. Isso facilmente ocorre quando a pessoa não é capaz de resolver seus afetos de maneira objetiva e integrá-los na resposta ao chamado de Deus.
Tal solução se dá partindo de uma visão cristã da vida, sem moralismo e sem radicalismos, favorecendo o amadurecimento da vontade interior em busca da realização do fim último que é o bem.
A restauração do sentido da vida e consequentemente da vida religiosa, passa inexoravelmente pela volta a Cristo. “A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”.
O encontro com o Senhor é a porta pela qual o sentido da vida emerge com toda a sua pujança e profundidade.
A heresia das obras é fruto do tormento da mentalidade do mundo que ganhou espaço também no interior de pessoas consagradas.
Cria-se uma necessidade permanente de inquietude e desejo de sempre estar fazendo algo. A interioridade, a vida de oração e a prática da meditação passa a não ser mais prioridade. É o prenuncio da exaustão espiritual.
É o declínio e a falência do sentido da consagração. É preciso voltar ao Cristo e reencontrar com a beleza do ágape da vida religiosa. Esta busca simples e desarmada reaviva em nós o dom de Deus que inclui o processo de renovação da fé e da volta ao primeiro amor. Nem sempre é possível fazer este caminho só.
É importante a humildade e a busca de ajuda. Eles existem, às vezes preferem-se não enxergá-las.
A prática da oração é o remédio eficaz contra os males que se abatem contra vida religiosa em nosso tempo.
A arte de orar leva à aquisição do pendulo do equilíbrio e da profundidade de alma. Deus nos criou com uma Inteligência e uma vontade para que livremente busquemos a verdade. Para nós a verdade é Cristo.
Buscá-lo é sinônimo de felicidade e profunda liberdade. Quem é de Cristo é livre. Ele não é um peso e muito menos subtrai nossa liberdade.
O amor de Cristo é o fim último que devemos buscar como cristãos e de maneira mais incisiva como pessoas a Ele consagradas.
A volta ao Cristo é a volta ao Amado. Ele nos dá o Espírito prometido para que o dom de Deus reavive dentro de nós e nos impulsione a uma vida de amor e alteridade com os outros. A vida comunitária não pode ser entendida somente como penitência e sofrimento, mas como lugar do ágape,da cura interior, do amor, da compreensão e da unidade que jorram da Cruz de Cristo.
Uma das belezas da vida religiosa é exatamente a vida comunitária e fraterna, tão corroída pelos cupins do egoísmo e do vazio humano produzidos pela mentalidade capitalista.
A alegria de ser de Deus decorre da certeza de que “só Deus é Deus” . As pessoas consagradas não precisam de ídolos, pois a entrega foi feita a Deus e nada se iguala a Ele. Qualquer tentativa de absolutizar idéias, coisas, pessoas, situações que ocupem o lugar de Deus torna-se idolatria e impede o afervoramento do dom e dos carismas.
Sem Deus a alma se perde em aventuras humanas, portanto passageiras e avassaladoras como as enchentes que deixam estragos.
No horizonte do caminho de reavivamento do chamado e da vida religiosa, não podemos esquecer que o estudo e o apostolado nos ajuda muito neste processo.
Há um notável e crescente fascínio pelas informações rápidas e imediatas que são como chuvas de verão que vem em abundância, a água escoa rapidamente e não encharca a terra em profundidade.
O estudo precisa ser parcimonioso, paciente e continuado, para que o conteúdo atinja o profundo terreno do coração, como a chuva mansa e permanente. Inegavelmente o estudo de conteúdos objetivos e seguros fará um bem extraordinário ao crescimento da pessoa consagrada. É um alimento para a alma.
A vida religiosa é um dom de si para os outros. A atitude de Jesus de “lavar os pés dos seus apóstolos e discípulos” fundamenta muito bem como deve ser a vida e o apostolado de uma pessoa consagrada.
O apostolado fervoroso é um meio que Deus usa para reanimar os que perderam os horizontes. No apostolado a pessoa consagrada vive o discipulado e a missão, aprende com as pessoas, solidariza com os que são oprimidos, ajuda a animar e a organizar as forças vivas em torno a Palavra de Deus e dos sacramentos. O apostolado é uma fonte de bênçãos e motivação, mesmo que simples e pequeno.
Concluo com uma breve alusão a excelência na vida religiosa. O que se precisa ter presente no processe permanente de reavivamento do dom de Deus é que se faz necessário chegar à perfeição mergulhado em pleno mundo.
O caminho para a perfeição passa, inegavelmente, pelo processo de conhecimento de si e da acolhida da própria história. É preciso aceitar os processos e conflitos do passado a partir da restauração efetivada por Cristo na Cruz. Às vezes dói realizar o encontro com o que somos, mas é profundamente libertador.
A excelência na vida religiosa implica alcançar degraus de maturidade humana (reconciliação consigo, com os outros e com a história pessoal), afetiva (equilíbrio e profunda liberdade nos relacionamentos, integração da sexualidade com o ágape de Cristo), intelectual (buscar o conhecimento que ajuda amadurecer a compreensão do significado da existência para si, para os outros e para Deus) e espiritual (cultivar a amizade com Deus na profundidade da leitura orante da Palavra de Deus e na celebração dos sacramentos).
Longe de ser um peso, a vida religiosa reavivada torna bela e leve a existência de quem a abraça. Longe de ser considerada desnecessária em nossos dias de materialismo e descrença, a vida religiosa é um tesouro relevante e profético, cujo testemunho aponta para o sentido último da esperança: a vida para além dos muros limítrofes da nossa existência material.
Deus abençoe cada um dos nossos irmãos e irmãs que abraçaram a entrega total a Cristo e dê força aos que estão parados a beira da estrada para que também eles possam, com a ajuda do Espírito Santo e nossa, reavivar o dom de Deus que há neles. Amém!
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